terça-feira, 29 de maio de 2012

Um Borges à brasileira


Tarcísio Gurgel em foto de Rodrigo Sena - Tribuna do Norte


Tarcísio Gurgel é mossoroense. Mas, antes de tudo, é um cidadão do mundo. E foi com esse cidadão do mundo, autor de Os de Macatuba (Contos, 1975), Pais, Filhos e Espírito da Coisa (Ensaio, 1988) O Eterno Paraíso (Contos, 1978), Conto por Conto (Contos, 1998), Informação da Literatura Potiguar (Ensaio, 2001), que travamos uma conversa. Munidos de gravador, perguntas e curiosidades, escutamos o nosso conterrâneo, Professor, Contista e Ensaísta que é considerado, atualmente, um dos mais conceituados críticos literários do nosso Estado.
Nos recebeu na sua sala, no Departamento de Letras da UFRN. Ali, diante de nós, estava o autor de Informação da Literatura Potiguar e de Os de Macatuba... Sentado, descontraído, interessado em nos prestar todas as informações, verificávamos um Borges à brasileira, nos tratos, nos gestos, nas observações. 

JORNAL CLANDESTINO - Quem é Tarcisio Gurgel, o escritor?
TARCÍSIO GURGEL - Tarcísio Gurgel, o escritor, é, antes de tudo, um apaixonado pela literatura, um escritor que sempre tem em mente que para escrever corretamente tem que ler boa literatura, tem que aprender com  os clássicos, tem que voltar à leituras já feitas, sobretudo no campo da poesia, e que tem também, de uma certa maneira, uma responsabilidade para com a literatura do Rio Grande do Norte.

JC - Seu livro de contos, Os de Macatuba, poderia receber outro título: Os de Mossoró?
A nossa tendência natural é sempre buscar uma referencialidade no campo do real, obviamente, sendo eu de Mossoró e as histórias dizendo respeito a uma cidadezinha que é um microcosmo onde se movimentam essas personagens, pessoas que estão num universo muito opressivo e cheio de situações tristes e humilhantes, por vezes, as pessoas logo imaginam que é uma representação clara e objetiva. Ora, como a minha cidade, existem mil outras cidades no mundo... há um livro no RN, uma bela ficção de um escritor chamado Aurélio Pinheiro, cujo título é Macau, onde ele retrata exatamente a cidade que tem esse nome. Mas é preciso levar em conta que esse referencial que se busca, muitas vezes, na realidade (Não cometeria a inverdade de dizer que meus primeiros exemplos são mossoroenses, claramente são), quando entram no campo da literatura, perdem essa referencialidade, se o tratamento for adequadamente literário, claro.

JC - Os de Macatuba, é um romance fragmentado?
Não. Embora, talvez por um ato falho, eu tenha deixado transparecer essa minha grande frustração. Na verdade, gostaria de ser um romancista, da mesma maneira que gostaria de ser um poeta; nunca consegui me desempenhar bem no romance. Nem chegaram a existir tentativas de romance pra valer; chegaram a existir tentativas de poesia, essas realmente foram desastrosas. No entanto esse livro de contos tem uma indisfarçável busca de unidade. Se observarmos os meus dois outros livros de contos, o Eterno Paraíso e Conto por Conto, veremos que eles são ecléticos, do ponto de vista estilístico, as histórias, etc... Os de Macatuba, não. Os de Macatuba tem uma unidade. As pessoas que tem lido e feito algum comentário acerca desse livro, consideram que a personagem é a própria cidade que, dando essa unidade, dá a falsa impressão de ser um romance, porque aqui e acolá existem referências, ora de personagens, ora de ambientes, ora de assuntos em contos diferentes; eles remetem uns para os outros, de modo que, às vezes, dar essa impressão.

JC - Informação da Literatura Potiguar, seu último livro, é um dos melhores ensaios já produzidos sobre a literatura do nosso Estado. Foi laborioso, esse trabalho?
Foi. Foi porque eu diria que faz uns bons trinta anos que me dedico ao estudo da literatura do Rio Grande do Norte. De um modo sistemático, isso se reduz para uma coisa em torno de uns quinze a vinte anos. O livro deve ter levado, para ser escrito, propriamente, uns cinco anos, até ficar pronto para ir para a livraria. Mas é um tipo de livro que você publica já com a sensação de que ele está superado. Isso tem uma certa magia, a literatura, e os estudos literários tem esses grandes desafios jamais superados, que é isso de você... por exemplo, eu estou diante de três produtores de literatura de Mossoró, dos quais apenas Cid augusto e Gustavo Luz, de passagem, são citados nesse livro. Marcos, você mesmo, essa menina que é uma cronista maravilhosa (Líria Nogueira) do mossoroense... As minhas idas à Mossoró, agora, estão me dando a verdadeira dimensão da produção literária da cidade. Digo isso com absoluta naturalidade. Eu tinha a certeza que, ao publicar o livro, já teria, talvez atrevidamente, porque a edição, inclusive, ainda não se esgotou, a sensação de que precisaria se pensar numa segunda edição atualizada. E isso é uma coisa que eu pretendo, quem sabe, o ano que vem.

JC - Como o senhor vê a atual literatura norte-rio-grandense, no momento?
Vejo com muito entusiasmo e com a perspectiva concreta de uma descentralização, dessa coisa da visão natalense da realidade da literatura do Rio Grande do Norte, que é um vício derivado de uma situação concreta, sociológica, histórica, econômica que remonta para os anos vinte, se tomarmos como referência a famosa antologia de Ezequiel Wanderley, Poetas do Rio Grande do Norte, onde há escritores do RN, mas com a exceção mossoroense de Martins de Vasconcelos e, possivelmente, de Edinor Avelino que já se encontrava em Macau; provavelmente, Palmério, em Assu... os outros escritores estavam localizados em Natal. O que é que isso indica? Indica a perversa realidade de que Natal, na verdade, era o centro da história e que, isoladamente, aqui e acolá, um escritor de algum talento e com uma obra em construção, que muitas vezes não se materializava em forma de livro, permanecia um pouco que esquecido no interior. Hoje, já se vê que a coisa é diferente. Há uma produção concreta, há uma produção nova, instigante, da qual, certamente, faz parte essa iniciativa de vocês, do jornal, que, sempre em juízo de outras contribuições ao próprio movimento literário da cidade, como a que faz o mossoroense já a algum tempo, representa uma coisa nova, uma coisa instigante, uma coisa que, com certeza, irá fazer com que novos escritores, cada vez mais interessantes, vão surgindo na cidade. Com certeza, desse trabalho resultará isso aí. A minha impressão atual da literatura do RN é o mais animador possível.  Acho que estamos trabalhando com bons autores. O desenvolvimento do censo crítico, de uns tempos para cá, eu diria a partir dos anos 60, já se verifica, de uma maneira muito clara. São muitos os escritores e os poetas que estão se lançando na maturidade. Isso dá a dimensão de que está muito viva a literatura do RN; no entanto, é preciso que não tenhamos ilusões quanto à pobreza do movimento editorial, sobretudo do ponto de vista da atuação do Estado, estimulando, acolhendo os novos autores, porque o que está acontecendo no RN, e isso, talvez, se se analisar com frieza, não seja de todo ruim, porque elimina, de vez por todas, aquela coisa do apadrinhamento; mas é gente que, isoladamente, vai fazendo o trabalho. Aqui em Natal temos o Abimael Silva, que é uma espécie de sucessor particular de Vingt-un; Vingt-un, aquele monumento mossoroense, nacional, eu diria, passando por cima do próprio Estado, infatigável, fazendo aquele trabalho e se antecipando. Lembro-me que há uns três anos Vingt-un publicou as atas de província... o Estado ignorou solenemente isso, durante quase duzentos anos! Ele é tão impressionante que sente as coisas... Vingt-un publicou, em fac-símile, vários números da Revista Oásis, que era uma das publicações mais importantes da chamada belle époque natalense, e ninguém aí sabe disso, ou deu conta... são essas coisas que, afinal de contas, deixa a gente muito otimista, embora o Governo e as prefeituras estejam quase sempre à margem desse processo, se bem que não surpreende que seja assim, salvo algumas poucas, raríssimas exceções, essas pessoas são analfabetas, literariamente falando. Não tem porque também agora querermos esconder. As exceções existem, mas, infelizmente, não tem podido ter uma atuação. Nós teríamos condições, com certeza, se essas pessoas tivessem em locais decisórios, de termos um resgate. Sou capaz de citar para vocês, agora, quinze títulos importantes da literatura do RN que estão esgotados. Entende? Quem sabe, daqui a algum tempo, alguma coisa de diferente aconteça e isso venha a ser resgatado?

JC - Qual a influência do Modernismo em seus textos?
Do modernismo, enquanto movimento, confesso que não vejo, nitidamente, influências. Com certeza no campo da linguagem sou uma pessoa influenciada pelo cinema, pelo teatro, pelo rádio, nisso que a teoria da literatura chama de intertextualidade, esse uso quase indiscriminado da linguagem como que revitalizando uma forma de narrativa que teria parado, em termos de qualidade, em Machado de Assis e em Maupassant. E se nada de novo viesse a ser feito, acho que o conto estaria estagnado. O grande desafio para o conto moderno foi exatamente isso. Por exemplo: no campo do romance consideraríamos a chegada da sísmica do Joyce, com Ulysses, que virou o romance de cabeça para baixo, e que no conto encontramos, entre os escritores mais ousados, modernamente falando, autores se nutriram sempre dessa viragem que surge, quando desponta a modernidade, também nos outros meios de comunicação.

JC - Como você se sentiu quando Os de Macatuba e Conto por Conto foram escolhidos para dois vestibulares?
Esse livro, Os de Macatuba, foi premiado com o Concurso Câmara Cascudo. Nesse tempo eu era balconista da Livraria Universitária, e convidado por Sanderson Negreiros fui assessorá-lo na Fundação José Augusto. Sem que eu soubesse de todo, a Fundação José Augusto no ano seguinte editaria Os de Macatuba. Com um texto nas orelhas que não aparece na segunda e na terceira edição, e que vai aparecer agora, não como uma orelha, mas como um texto que eu decidi resgatar para a história, numa edição que a A.S Livros, juntamente com a A.S Editores, irá relançar este ano no Projeto Letras Potiguares, que é composto de um conjunto de dez livros em prosa. Bem, como ia dizendo,esse texto foi escrito por Dailor Varela, que era um texto da mais absoluta provocação. Um texto que dizia assim, na sua parte mais veemente: de uma certa maneira Os de Macatuba inaugura o moderno conto do Rio Grande do Norte, porque o que havia era uma narrativa convencional, etc... Com o nosso Newton Navarro, uma das mais importantes figuras da cultura do RN, que tem dois livros de contos fantásticos, um dos quais, pessoalmente, considero uma pequena obra prima, que é Os Mortos São Estrangeiros, se instaura uma certa polêmica... O outro livro dele se chama o Solitário Vento de Verão, um belo livro que foi lançado na época, com um ano de diferença do Aprendiz de Camelô, de Jaime Hipólito Dantas. Newton Navarro se sente absolutamente atingido por conta desse comentário de Dailor Varela e, entre outras alegações, lembra que o livro dele Os Mortos São Estrangeiros, o que era uma verdade, que tinha obtido um maior reconhecimento. Inclusive escritores como Érico Veríssimo haviam escrito cartas para ele, fazendo elogios ao livro, etc... e que aquilo lá (o comentário de Dailor) era inaceitável. Essa indignação de nosso querido Newton Navarro, só fez bem a Os De Macatuba, porque se instaurou uma espécie de polêmica num suplemento que havia aqui no Poty... Num domingo alguém escrevia se solidarizando com Newton Navarro, noutro domingo, alguém que comungava das mesmas idéias estéticas que eu, escrevia em defesa de Os de Macatuba. E nisso foram uns três meses. Um pouco mais adiante o livro é escolhido para a Federal. O que aconteceu em Mossoró com o outro, Conto por Conto. E aí entra a sua pergunta. Eu me senti envaidecido, uma coisa que me deixou muito feliz, mas, ao mesmo tempo, preocupado. O Tarcísio Gurgel foi escolhido duas vezes para figurar com dois livros; Jorge Fernandes, ao que saiba, não foi; Newton Navarro, que citei há pouco, que eu saiba, não foi; Zila Mamede, ao que saiba nunca figurou num vestibular do RN; Policarpo Feitosa, Luis Carlos Guimarães, Auta de Souza, Ferreira Itajubá, Madalena Antunes Pereira, Ney Leandro... então, qual é o critério que adotam os nossos professores de literatura para trabalharem com a escolha? Parece-me que as comissões que preparam vestibular no RN precisam descobrir a literatura do RN. Vamos chamar a atenção para esses outros escritores! Não é possível que o autor do RN continue a margem dos vestibulares que são realizados, tanto na Federal, como na Estadual e também nas demais faculdades particulares, por que não? E chega até ser uma falta de decência não colocar esse autor que eu vou citar agora: Dorian Jorge Freire, que é um estilista de marca maior. Não há no RN, atualmente, quem escreva como Dorian!

JC - Você acha a poesia atualmente produzida no RN, medíocre?
Não. A minha posição em relação à poesia é a de que a poesia de qualidade transcende questões tão pequenas quanto estilo, época... 

JC – Qual a influência dos jornais na literatura?
Ultimamente a influência e o espaço destinado, inexistem. Mossoró dar de dez a zero nisso. O Mossoroense, essa iniciativa de vocês com o Clandestino... Vocês sabem que há pouco suspenderam a circulação de O Galo, que era um jornal que tinha uma tradição de cerca de dez anos. Eu diria que os estertores dessa acolhida da literatura nos jornais locais aconteceram ainda nos anos 60 e, provavelmente, o último suplemento literário que circulou em Natal foi o suplemento Contexto; permitam a franqueza, foi um suplemento criado por mim que o editei durante alguns meses e que passou a ser mais bem editado quando J. Medeiros o assumiu, fazendo uma revolução visual no suplemento. Na verdade é uma lição que foi, definitivamente, esquecida pela imprensa do RN. O tempo áureo dessa história foi a belle époque. Alguns jornais da época acolhem a literatura: o jornal A República, A Revista do RN, do Centro polimático, a revista cultural Oásis e A Tribuna, que, penso, era o melhor deles todos. Na Tribuna escreviam Henrique Castriciano, Segundo Wanderley, Antônio Marinho, Auta de Souza, Sebastião Fernandes, Ezequiel Wanderley. Os poemas mais expressivos de Horto são lançados no jornal A Tribuna. A Tribuna publicava inéditos de Auta de Souza. Henrique Castriciano obtinha dela e levava para A Tribuna. 

JC - Você acha que a lei câmara cascudo está cumprindo o seu papel de fomentadora da cultura?
Eu sou contra as leis culturais. E digo com toda a clareza: acho que o Governo deveria definir uma linha de crédito e obrigar as instituições bancárias a abrirem suas portas à área cultural, de tal maneira que esse crédito fosse destinado aos escritores. O artista devia, sim, ter a possibilidade de chegar e dizer: “Olha, preciso de cinco mil reais para editar esse livro!” É uma operação comercial, bancária, comum... Então fica essa história desse paternalismo nojento, humilhante, essa coisa de achar que criou uma lei e resolveu o problema. 

JC - Para você o que significa o ato de ler e o de escrever?
Considero o ato de ler uma das conquistas mais fantásticas da humanidade. Esse ler deve se tomar, naturalmente, latu sensu. A primeira leitura que se faz aí é uma leitura de mundo. O homem saindo da caverna, verifica que tem um animal agressivo ali na frente e recua; com o mínimo de razão se protege. O ato de ler dar a possibilidade para um sujeito que está numa pequenina cidade, num quarto de uma casa modesta, viajar pelo mundo todo, e abrir perspectivas para ele próprio sair desse ambiente e ocupar outros ambientes. Tenho acompanhando casos de pessoas que tem crescido na vida pela via exclusiva da leitura. Não paramos nunca de estudar. E esse estudar para mim significa ler. Nunca me contentei com a coisa do professor. E digo para meus alunos: olha, se vocês acreditam pura e simplesmente aqui na sala de aula, muito provavelmente vocês estão enganados, porque eu posso estar dizendo uma série de mentiras com um certo charme e vocês acharem que é isso mesmo. Vocês têm que procurar no livro se eu estou certo ou não, e estudar etc. Escrever, para mim, é um ato de extrema responsabilidade civil.

JC – Que você tem a dizer para o Clandestino?
É de experiências como as do Clandestino que pode surgir, quem sabe, uma renovação instigante na literatura de Mossoró, na medida em que vocês estão fazendo um trabalho que decorre naturalmente de um outro já executado há algum tempo pelo Mossoroense... O trabalho do Clandestino, é um trabalho voltado à literatura e tem a possibilidade de explorar tendências estéticas as quais vocês estão experimentando.


Entrevista publicada na edição número 8, do jornal Clandestino, junho de 2003.

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